A armadilha da arte conceitual

Clodoaldo Turcato – CODO
Escritor, Jornalista, Dramaturgo, Poeta e Artista Plástico

Você já provavelmente deve ter esbarrado numa exposição em que francamente achaste uma loucura, que o sujeito que o fizera tinha um parafuso a menos e principalmente o local que recebera tal obra estava totalmente lesado. E se for ler ou estudar um pouco da arte a partir dos anos 60 e não seguir até o final, sem paixão ou conceitos, dirá que tudo feito até então não passa de uma viagem de gente maluca e drogada. Latas contendo excrementos humanos, um sujeito explicando obras de arte para uma lebre, um homem enrolado em lona de feltro, uma cadeira de madeira simplesmente colocada na parede, um tubarão guardado em formol numa caixa de vidro são algumas das grandes obras reconhecidas e expostas em grandes museus no mundo. Então você se pergunta: isso é arte? Bem, com toda humidade eu posso garantir que sim, apesar de ter reservas, é arte. 

A arte conceitual surgiu em 1960, como um desafio às classificações impostas à arte por museus e galerias. As galerias afirmavam  categoricamente ao público “isso é arte!” Fim. O filósofo e ativista Henry Flynt fez a primeira referência à arte-conceito em 1961, mas o temos arte conceitual só foi usado no fim da década. Em 1967, o artista Sol LeWitt escreveu um artigo para o jornal Arforum intitulado Parágrafos sobre a arte conceitual. Nesse texto, ele afirmava que a nova arte era uma inversão das artes anteriores e que trazia o conceito para o primeiro plano, tornando a produção da própria arte algo secundário, remontando suas origens ao dadaísmo e à Fonte de Duchamp. 

A arte conceitual também era uma reação à arte considerada mercadoria. O artista italiano Piero Manzoni questionou a natureza da arte criticando a produção de massa e consumismo de modo particularmente provocativo. Em 1961, ele produziu 90 latinhas com o rótulo “Merda do artista”. Cada lata continha supostamente fezes do artista e valia seu peso em ouro. Como abrir a lata seria o mesmo que destruir a obra, nunca se soube o que as latas continham de fato. De qualquer maneira, esta atitude não foi para provar ou não se dentro da lata tinha ou não fezes. Longe disso. Uma obra de arte conceitual tem muito mais de crença  ou de virtudes na originalidade do que no significado pleno que queremos dar a ela. De qualquer maneira existem alguns problemas em não compreender o conceito. Então o excremento de cachorro que encontramos na rua todos os dias é arte? Tudo é arte? Esta é uma armadilha que precisamos sair.

A arte conceitual já proporcionou momentos engraçados no Brasil e no mundo. Em outubro passado o artista Goldschmied and Chiari havia montado uma obra chamada Onde vamos dançar esta noite?, composta por bitucas de cigarro, garrafas vazias e confetes, a obra tem o objetivo de representar o hedonismo e a corrupção política vividos na década de 1980. Ocorre que na manhã de sábado uma faxineira nova do museu achou que aquelas “sujeira” era o resultado de uma festa que teria ocorrido na noite de sexta-feira e simplesmente limpou o local. Um acidente similar ocorreu em Bari, no sul da Itália, em fevereiro de 2014. Uma faxineira jogou fora trabalhos que faziam parte de uma instalação da galeria Sala Murat. Segundo a empresa responsável pelo serviço de limpeza do local, a faxineira confundiu as peças, feitas de jornais e cartões, com lixo. Ela disse à época que estava “apenas fazendo seu trabalho”.  Em 2009, o Museu de Arte Contemporânea de Olinda estava mostrando uma coletiva de arte conceitual. Em dado momento um dos funcionários do museu percebeu que três pessoas estavam diante do extintor de incêndio discutindo a “obra”. A discussão se adiantou ao ponto de um dos visitantes perguntar ao funcionário por que não havia o nome do artista na obra. O funcionário respondeu que não havia nome por que se tratava do extintor de incêndio do prédio – armadilha.  

No caso de Olinda, o extintor estava no lugar cumprindo sua função. Logo era apenas um extintor. Imagine que um artista resolva tirar este extintor de seu ambiente e coloca-lo num berço ou pendurado numa sala de estar flertando com um lustre de luxo? Seria arte então? Depende se este objeto exprime algo além da mesmice. Isto é o diferencial para se compreender o que é arte ou não. De qualquer maneira algumas produções são bem questionáveis, o que não deixa de ser arte. Prova disso foi a participação brasileira 56ª Bienal de Arte de Veneza. André Komatsu, Berna Reale e Antonio Manuel representaram numa mostra política, com o título É Tanta Coisa Que Não Cabe Aqui. Os três construíram um lugar de aprisionamento como crítica a uma falsa liberdade em que transita o indivíduo contemporâneo. É como se o trio dissesse que para, sermos livres, precisamos estar trancafiados num espaço cirurgicamente limpo, falso, montado por nossa imaginação, na estética do “condomínio”, citando Christian Dunker. E há também o aprisionamento do outro, na pobreza econômica, na violência física, social e cultural, que é uma maneira de garantir nossa própria e mesquinha sobrevivência. Há, portanto, um paraíso de felicidade eterna, sem conflito, límpido e o inferno são os outros. Cada trabalho postos separadamente perdem totalmente  o sentido, embora atinham lá seus objetivos. Porém, juntos, é muito interessante como cada trabalho dialoga entre si e com o resto das obras da mostra central no Arsenal, onde esta ideia de desordem aparece explícita em criações de artistas do mundo todo. A artista Berna Reale já surpreendeu com uma performance feita 2014 na cidade de Belém. Munida de uma carroça de tração humana, ela cruzou as ruas da capital paraense com ossos humanos. Está carroça foi exposta em diversas cidades brasileiras. A ousadia da artista não para por aí: uma de suas obras mais celebre chama-se Cantando na chuva, onde a artista aparece no meio de um lixão, sobre um tapete vermelho, vestindo um terno dourado com uma máscara de gás, sambando. Antônio Manuel é outro artista que incomoda com seus trabalhos. Sua obra exposta em Veneza, Ocupations Discoveries, é uma série de murros de tijolos com um buraco feito à marretadas. O visitante precisa passar pelos buracos e sentir. Assim interage com a obra, fazendo parte dela. Arte? 

O artista mais celebrado em arte conceitual é sem dúvida o inglês Damien Hirst. Quando jovem estudante, ele descobriu as pinturas macabras de Francis Bacon. Na época ele estava tentando se fixar como pintor, mas acabou desistindo por achar todas suas telas “Bacon ruins”. Em 1990, ele produziu A Thousand Years, uma obra de concepção brilhante e execução esplêndida que conseguiu ser mórbida e afirmadora da vida. Consiste em uma grande caixa de vidro retangular, medindo 4 metros de comprimento, por 2 metros de largura e 2 metros de altura, com uma moldura de aço preta. No centro há uma divisória de vidro em que foram furados 4 orifícios redondos do tamanho de um punho. De um lado da divisória há uma caixa cúbica feita em MDF que parece um enorme dado, com a diferença que todos os lados estão marcados com um ponto preto. No meio do assoalho do outro lado da parede está a cabeça de uma vaca morta em putrefação. Sobre ela está pendurado um insectocutor (dispositivo que combina luz ultravioleta e eletrocussão, do tipo que se vê em açougues). Em dois cantos da caixa de vidro estão duas tigelas com açúcar. Para completar a peça, Hirst acrescentou moscas e larvas. O ciclo de vida e morte se completa num único espaço: moscas põem ovos na cabeça da vaca, o ovo vira larva, a qual se alimenta da carne deteriorada da vaca antes de se transformar numa mosca, que depois come um pouco de açúcar, copula com outra mosca, põe alguns ovos sobre a cabeça da vaca e é fulminada pelo insectocutor, cai em cima da cabeça da vaca, onde seu corpo, agora morto, torna-se parte matéria orgânica e fonte de alimentação para novas larvas. Repulsivo! Bonito! Arte! Sim, arte! Hirst não era biólogo, portanto que sua criação não é um estudo em laboratório, mas uma peça de arte. 

Em resumo, a obra de Hirst resume o objeto da arte conceitual. Não basta para estes artistas estarem nas paredes, presos por molduras ou elevados. A ideia é tornar-se componente do espaço que ocupam e interagirem diretamente com o espectador, criando um laço de amor ou ódio. Você pode não gostar, ter ressalvas, fugir da exposição ou amar. Bem, isso é muito particular. Porém, admita: a arte conceitual é a mais questionadora de todas as formas de expressão. Artistas como Hirst nos faz rever milênios de conceitos e concepções que são comuns e escondemos embaixo de nosso tapete. Então arte conceitual não é para olhos virgens, necessitamos de calos nos olhos e mente aberta para compreender todo o processo e a ideia, Uma obra para atingir espectador precisa ser bem construída, logo não pode ser feita por qualquer um, tem que ter lógica, embora parece fora de qualquer parâmetro, e assim não ser apenas um embuste.

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